A derrota acachapante do governo Lula (PT) no Congresso Nacional – que derrubou a alta do IOF sobre crédito, câmbio e previdência privada – não apenas escancarou a fragilidade da articulação política do Planalto. Também empurrou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para uma sinuca de bico fiscal.
Haddad terá de correr contra o tempo para apresentar alternativas que compensem a frustração de receita e garantam ao menos um mínimo de equilíbrio nas contas públicas. Com o aumento do IOF, o governo estimava arrecadar cerca de R$ 10 bilhões em 2025. Ao derrubarem o decreto, deputados e senadores retiraram uma parte do remendo improvisado que mantém o arcabouço fiscal, e agora parece fadado a naufragar.
A expectativa é de que as medidas sejam apresentadas antes da próxima divulgação do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (RARDP), prevista para 22 de julho, daqui a três semanas. Antes disso, o governo terá de decidir se vai ou não recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para reverter a decisão do Congresso.
O ministro defende a ação também por parte do Executivo. “Na opinião dos juristas do governo, [a decisão do Congresso ] é flagrantemente inconstitucional”, disse na quinta-feira (26) à Folha de S.Paulo. “Se houver uma manifestação da PGFN [Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional] ou da AGU [Advocacia-Geral da União] dizendo que o decreto legislativo é inconstitucional, eu sou pela Constituição.”
Nesta sexta-feira (28) Lula pediu à AGU para analisar a constitucionalidade da decisão do Congresso, sob o mesmo argumento de ser uma prerrogativa do presidente da República de editar esse tipo de mecanismo. O advogado-geral da União, Jorge Messias, ja havia afirmado na véspera que a decisão será “técnica” e caberá ao mandatário.
Enquanto o governo não se decide, aliados já se mobilizam: nesta sexta-feira (27), o deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) avisou no X que seu partido entrará no STF “para reverter a derrubada inconstitucional do decreto do IOF”.
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Derrubada de decreto do IOF pode ser inconstitucional
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo consideram que estão em debate os limites entre a competência regulamentar do Executivo e o poder normativo do Congresso Nacional. Um dispositivo constitucional permite ao Congresso “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.
É nesse argumento que se baseia a ação do PSOL. “A sustação dos efeitos do Decreto nº 12.499/2025 pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo 176/2025, ultrapassa os limites constitucionais impostos ao Poder Legislativo e configura verdadeira usurpação de competência privativa do Poder Executivo, violando frontalmente o princípio da separação dos Poderes”, diz trecho da ação.
Na avaliação de membros do governo, a derrubada do decreto pelo Congresso contraria esse dispositivo, já que elevar as alíquotas do IOF, embora impopular, é um ato dentro do “poder regulamentar” do Executivo.
“O STF já analisou, em outros contextos, a legitimidade da atuação do Executivo na fixação de alíquotas de tributos regulatórios como o IOF, dentro dos parâmetros da legalidade estrita e da anterioridade mitigada”, avalia Wilson Sahade, do escritório Lecir Luz e Wilson Sahade Advogados.
Para Carlos Henrique Girão, CEO da Soma Advocacia, o STF pode entender que o decreto legislativo extrapolou os limites constitucionais e invadiu as competências do Executivo. “No entanto, entendo que ampliar a base e as alíquotas do IOF com finalidade arrecadatória não é legítimo, uma vez que a natureza do IOF é regulatória, e não arrecadatória”, pondera.
“Há, portanto, um desvirtuamento da finalidade original do imposto, adotado em razão da urgência e da busca por soluções rápidas, ainda que inadequadas.”
O tributarista Hugo Funaro, do Dias de Souza Advogados e mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP, vai pela mesma linha. Segundo ele, a derrubada do decreto se sustenta com o art. 49, V, da Constituição Federal, que atribui ao Congresso “competência exclusiva para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”. “Trata-se de instrumento fundamental do sistema de freios e contrapesos inerente ao Estado Democrático de Direito, concebido com a finalidade de resguardar a sua competência legislativa primária, em linha com o princípio da separação de poderes”, afirma Funaro.
Recurso ao STF estremece ainda mais relação entre Poderes
A possibilidade de recurso ao STF provocou reação no Legislativo e acentuou o desgaste político entre os Poderes. Parlamentares – especialmente da oposição e do Centrão – vêm criticando abertamente a “dobradinha” entre Executivo e Judiciário em temas tributários, apontando uma interferência indevida do governo por vias judiciais em matérias de competência exclusiva do Parlamento.
O presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira, foi às redes sociais para denunciar o que classificou como um “fracasso político” do presidente Lula — que, segundo ele, “não pode ser resolvido no STF”.
“Além de ignorar a vontade do Congresso, o governo tenta transformar um fracasso político em questão judicial. Um movimento perigoso, que desrespeita a democracia e esvazia o papel do Legislativo”, escreveu.
A avaliação entre líderes partidários é de que uma investida no Supremo agravaria ainda mais a já tensa relação entre o Planalto e o Congresso.
Vale lembrar que o Executivo ainda busca aprovar uma série de projetos prioritários antes do recesso parlamentar, que começa em julho. Entre eles o que isenta o Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança, considerados vitrine eleitoral para o PT em 2026.
O principal deles, porém, tem relação direta com a compensação fiscal. O governo precisa aprovar a Medida Provisória nº 1.303, editada às pressas neste mês, que prevê novas fontes de arrecadação. A expectativa é arrecadar cerca de R$ 10,5 bilhões em 2025 e R$ 20,6 bilhões em 2026.
A MP prevê o aumento da CSLL de 9% para 15% sobre instituições como fintechs e operadoras de cartão, a tributação de apostas online, a taxação de aplicações atualmente isentas (como LCI, LCA, CRI e debêntures incentivadas) e a criação de uma alíquota única de 17,5% sobre ganhos de capital, incluindo criptoativos.
Embora significativas, apenas a tributação sobre as apostas online entrou em vigor imediatamente após a publicação da MP. As demais estão sujeitas à noventena (fintechs e instituições de pagamentos) ou só passam a valer no próximo ano, como o IR sobre LCI/LCA, aplicações financeiras, JCP e criptoativos.
Haddad aposta em contingenciamento e outras receitas para compensar IOF
Enquanto avalia o custo político do recurso, a Fazenda articula outras saídas para a compensação. O corte de gastos não está entre elas. Como alternativa à frustração com o IOF, Haddad mencionou a criação de novas fontes de receita — leia-se: aumento de impostos. No entanto, o presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, já descartou essa possibilidade e manifestou insatisfação com a ausência de propostas consistentes de ajuste fiscal por parte do Executivo.
De qualquer forma, o governo tem a opção de fazer um novo contingenciamento, algo que já vinha sendo estudado antes mesmo da derrota no Congresso. A estimativa é de um bloqueio adicional de R$ 12 bilhões, que se somaria aos R$ 30 bilhões já congelados em maio. “Vai pesar para todo mundo. Vai faltar recurso para a saúde, para a educação, para o Minha Casa, Minha Vida. Não sei se o Congresso quer isso”, afirmou o ministro.
Uma terceira alternativa é a possibilidade de receitas relativas ao petróleo. A ideia do governo é antecipar a venda da sua parte da produção de petróleo nas áreas do pré-sal que ainda não têm contratos de exploração.
Um projeto de lei (2632/2025) enviado ao Congresso em regime de urgência em maio autoriza a Pré-Sal Petróleo (PPSA) – estatal criada em 2010 exclusivamente para fazer a venda pública da parcela da União nas áreas em regime de partilha – a leiloar esses volumes. Na prática, a proposição abre caminho para que a União transforme imediatamente em dinheiro a produção futura das jazidas. A estimativa é arrecadar entre R$ 15 bilhões e R$ 37 bilhões.
Para Felipe Salto, ex-diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) e hoje economista-chefe da Warren Investimentos, a obtenção de “receitas atípicas, eventualmente oriundas do petróleo” combinadas ao contingenciamento adicional devem garantir a manutenção do arcabouço fiscal em 2025.
Mas a possibilidade de alteração da meta para 2026, que já era prevista, ficou ainda mais forte com a derrubada do IOF. Segundo o economista, mesmo com as receitas adicionais previstas no decreto, a revisão de gastos tributários (ainda não enviada pelo Executivo) e a MP 1.303, seria preciso um contingenciamento de R$ 25 bilhões a R$ 30 bilhões no próximo ano para cumprir o objetivo fiscal.
“Para o ano que vem, estamos com projeções muito diferentes do projetado pelo governo no PLDO [Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias] e vemos uma necessidade expressiva de cortes ou novas medidas, mesmo na presença do IOF”, declarou na quinta-feira (26) ao site NSC Total. Sem ele [o decreto do IOF], as coisas complicam ainda mais e a mudança da meta fiscal será líquida e certa.”
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