O endividamento público brasileiro saltou preocupantemente nos últimos anos e deve continuar nesse ritmo. Em maio, era de 76,1% do PIB, segundo o Banco Central (BC). e pode chegar em 99,4% em 2029, de acordo com projções do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Decisões federais como reajustes do salário mínimo, benefícios vinculados e a nova regra fiscal impulsionaram esse avanço, embora o Executivo não seja o único responsável.
Estudos mostram que estados e municípios também têm impulsionado a alta na dívida pública. Embalados por decisões da Justiça e do Legislativo, os entes subnacionais têm conseguido captar mais recursos do governo federal, repassando os custos dessa expansão fiscal para a União.
A análise é do economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper. Em estudo publicado pelo Instituto Millenium, intitulado “Muito além das emendas parlamentares: como os estados e municípios estão extraindo cada vez mais recursos do Governo Federal para expandir suas despesas”, Mendes detalha esse fenômeno.
O pesquisador apontou quatro mecanismos que têm ajudado a ampliar as despesas de estados e municípios:
- Aumento nas receitas e despesas do orçamento federal com os entes subnacionais (incluindo emendas parlamentares);
- Redução no pagamento de dívidas dos estados com a União;
- Inadimplência de dívidas garantidas pela União, sem execução das contragarantias; e
- Ampliação das autorizações para operações de crédito estaduais e municipais.
Entre 2015 e 2024, esses fatores causaram uma alta de de 4,1 pontos percentuais do PIB nos gastos de estados e municípios. O avanço tem contado com o apoio do Congresso Nacional — sensível aos interesses regionais — e do Supremo Tribunal Federal (STF), cujas decisões frequentemente favorecem estados e municípios em detrimento da União.
Estados e municípios não são os únicos responsáveis pelo aumento da dívida pública. O governo federal também tem sua parte, ainda que tente minimizar o impacto do crescimento da dívida destacando o avanço do PIB em cerca de 3% ao ano. O aumento da relação dívida/PIB indica, contudo, que esse crescimento não tem sido suficiente para conter o desequilíbrio fiscal.
“E não resolve porque a dívida está crescendo muito rápido. Por dois motivos: primeiro porque o arcabouço fiscal não garante a geração de um resultado primário suficiente para levar a essa estabilização; segundo porque os poupadores já perceberam a inconsistência da política fiscal e estão pedindo juros altos para refinanciar a dívida pública”, afirma.
“Descentralização fiscal silenciosa”
Manoel Pires, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), também chama atenção para o fenômeno, que ele batizou de “descentralização fiscal silenciosa”. Segundo ele, os ajustes realizados pelo governo federal desde 2024 não têm sido acompanhados por estados e municípios, o que dificulta a coordenação econômica, social e política.
Os números mostram o descompasso: entre 2019 e 2024, os gastos primários do governo federal cresceram 5% em termos reais — de R$ 484 bilhões para R$ 508,2 bilhões. Já os gastos de estados e municípios subiram 26,4%, cinco vezes mais, passando de R$ 510,3 bilhões para R$ 645 bilhões.
Repasses federais turbinam orçamentos locais
Grande parte desse crescimento decorre das transferências obrigatórias da União. Mendes aponta que, entre 2010 e 2019, a média anual das transferências era de 5,4% do PIB. Em 2024, o índice chegou a 6,6%, sem piorar o resultado fiscal dos subnacionais.
O aumento está ligado a mudanças legislativas promovidas pelo Congresso, como as que ampliaram os repasses via Fundo de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM).
Também pesou o crescimento das transferências por meio do Fundeb. Em 2020, com apoio da esquerda, o Congresso aprovou o aumento gradual da contribuição da União, de 10% para 23% até 2026 — hoje está em 21%.
Renegociação e crédito fácil afetam dívida pública
Outro fator relevante é a renegociação constante das dívidas dos estados. Desde o governo Dilma Rousseff, sucessivos presidentes cederam a pressões políticas para aliviar os encargos estaduais, de acordo com Mendes.
Além disso, a União atua como garantidora de empréstimos junto a organismos internacionais. Mesmo com contragarantias previstas, a inadimplência de estados aumentou desde 2017.
Aprovada em 2025, a Lei Complementar 212 ou o Plano de Pleno Pagamento das Dívidas Estaduais (Propag) reduziu juros, ampliou prazos e permitiu o uso de bens para quitação de dívidas — o que tem gerado sobreavaliações e judicializações, sem exigir ajustes fiscais efetivos dos beneficiários.
Como resultado, entre 1998 e 2015, estados e a Prefeitura de São Paulo pagaram, em média, 0,6% do PIB ao ano à União em juros e amortizações. Entre 2016 e 2024, o valor caiu para 0,23%.
Endividamento cíclico e risco de inadimplência
A expansão do crédito a estados e municípios também contribui para a dinâmica. Após as renegociações dos anos 1990, o controle do endividamento passou ao Ministério da Fazenda e ao Conselho Monetário Nacional CMN), com limites definidos pelo Senado Federal.
Mendes ressalta que o modelo é pró-cíclico: quando a receita cresce, amplia-se a capacidade de endividamento. Mas, nos momentos de queda, os contratos anteriores permanecem, elevando o risco de calote.
Segundo ele, nessas situações, caso o Executivo se mostre complacente com o desequilíbrio fiscal, a situação pode se agravar com mais autorizações de crédito. Em 2013, no governo Dilma, as contratações chegaram a 3,5% do PIB. Entre 2019 e 2020, ficaram abaixo de 1,5%, mas já em 2023 praticamente alcançaram 2,5% do PIB — patamar ultrapassado em 2024.
Tendência estrutural de alta nos gastos e pressão sobre dívida pública
O estudo mostra que a alta dos gastos de estados e municípios não é pontual, como foi durante a pandemia. Naquele período, o governo federal repassou recursos a fundo perdido e congelou salários, o que gerou acúmulo de caixa para estados e municípios. Desde então, esses recursos vêm sendo usados, mas a tendência é de manutenção do padrão elevado de despesas.
Mendes avalia que o risco de a dívida pública atingir um ponto insustentável existe, embora seu limite exato seja incerto. “Depende da credibilidade do governo e de suas promessas de ajustes nas contas”, diz.
Quando essa confiança se esgota, ou a dívida passa a ser corroída pelo aumento da inflação, ou o governo encontra meios de desvalorizar a dívida, como ocorreu, por exemplo, no congelamento dos ativos financeiros no Plano Collor.
Caso não haja a reversão do crescimento da dívida pública, segundo Mendes, o país pode enfrentar nova crise como a de 2014–2016, com falências, inflação e queda do potencial de crescimento. “Sempre que há uma grande recessão, há muita perda de capital… é uma grande perda que demora a ser recomposta e prejudica o potencial de crescimento de médio e longo prazo”, afirma o pesquisador.
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