Economia

Haddad distorce fatos para alegar “herança maldita”

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem desempenhado papel central na estratégia do governo de atribuir à gestão anterior o descontrole das contas públicas — rotulado como “herança maldita”. Para sustentar o discurso, trechos de um vídeo em que o ministro apresenta informações distorcidas vêm sendo replicados nas redes sociais por apoiadores petistas.

Quem deu a partida foram lideranças do PT, incluindo o perfil oficial do partido e o da ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, após declarações de Haddad em audiência na Câmara – encontro que, por sinal, foi encerrado após bate-boca do ministro com os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Carlos Jordy (PL-RJ).

As alegações de Haddad tentam justificar o déficit primário acumulado nos dois primeiros anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – R$ 241,5 bilhões, ou 2,2% do PIB – e desqualificar o superávit registrado no último ano da gestão de Jair Bolsonaro (PL). O resultado de 2022, de R$ 54,9 bilhões ou 0,6% do PIB, foi o único saldo positivo das contas primárias federais de 2014 até hoje.

Haddad atribuiu o número de Bolsonaro ao que chamou de “calote” nos governadores e nos precatórios, “barbeiragem” na privatização da Eletrobras e à “depenação” da Petrobras. “Assim, qualquer um faz superávit”, afirmou o ministro.

Uma análise dos fatos, no entanto, desmonta os principais pontos dessa narrativa.

1. Dividendos da Petrobras e a acusação de “depenação”

Um dos argumentos inverídicos do ministro diz respeito à distribuição recorde de dividendos da Petrobras em 2022 — mais de R$ 200 bilhões. Segundo Haddad, o governo Bolsonaro teria “depenado” a estatal para inflar artificialmente o superávit primário.

A distribuição, no entanto, se deu graças a resultados extraordinários – lucro recorde de R$ 188,3 bilhões, com aumento de 77% em relação ao ano anterior – obtidos com a alta global no preço do petróleo e ganhos por melhoria de gestão.

A política de dividendos aprovada pelo conselho de administração, respeitando as regras de governança corporativa, só foi possível após anos de recuperação financeira. O saneamento começou em 2016, no governo Michel Temer (MDB), com políticas de desinvestimento, austeridade e foco na atividade principal da empresa – práticas que tiveram sequência na gestão Bolsonaro.

Durante os governos do PT, a Petrobras sofreu perdas bilionárias – relacionadas ao congelamento dos preços dos combustíveis e a investimentos de má qualidade – e protagonizou o maior escândalo de corrupção da história brasileira, revelado pela Operação Lava Jato. A reversão desse quadro, com o fim das gestões petistas, foi fundamental para que a empresa voltasse a distribuir lucros.

Além disso, o próprio governo Lula se beneficia das distribuições de dividendos. Em 2023 e 2024, a Petrobras repassou à União cerca de R$ 30 bilhões por ano, recursos que ajudaram a fechar as contas do Tesouro.

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2. A “barbeiragem” da privatização da Eletrobras

Haddad também criticou a privatização da Eletrobras, aprovada pelo Congresso em 2021 e executada em 2022, classificando o processo como uma “barbeiragem” feita “na bacia das almas”, que teria gerado perdas ao patrimônio público e ajudado no resultado fiscal.

“Superávit primário desse jeito qualquer um faz. Dando calote, vendendo patrimônio público”, disse Haddad. No entanto, a receita da privatizações e concessões não entram no cálculo do resultado primário. A União só pode usar os recursos para abater a dívida pública, conforme determina a legislação. Portanto, não inflou o superávit do governo Bolsonaro.

O objetivo da operação foi de reduzir o peso fiscal de uma estatal dependente de altos investimentos e vulnerável à ingerência política. A venda manteve o poder de veto do governo em decisões estratégicas (golden share) e destinou parte dos recursos à modicidade tarifária e ao equilíbrio do setor elétrico. Trabalhadores também puderam usar o FGTS para comprar ações da empresa, o que ampliou a base de investidores e democratizou o acesso ao mercado.

A crítica também ignora o histórico de má gestão e aparelhamento político da estatal em governos anteriores, inclusive do próprio PT. O mercado interpretou a privatização como uma forma de blindar a companhia da interferência que minou sua eficiência no passado.

Lula já falou em reestatizar a Eletrobras pelo menos três vezes. Em fevereiro de 2023, sinalizou que a AGU poderia contestar os termos do processo. No mês seguinte, chamou a privatização de “crime de lesa-pátria”. E, em maio de 2023, voltou ao tema ao criticar a governança da empresa e ajuizar uma ação no STF para contestar o modelo de voto proporcional.

3. A redução do ICMS dos combustíveis e a compensação aos estados

O ministro da Fazenda também critica a política de desoneração do ICMS sobre combustíveis em 2022, adotada pelo governo Bolsonaro em meio à escalada internacional dos preços do petróleo causada pela guerra entre Rússia e Ucrânia.

Haddad acusa o ex-presidente de ter dado um “calote” nos governadores ao prometer uma compensação federal pela perda de arrecadação estadual — compromisso que, segundo Haddad, só foi cumprido em 2023, já na gestão Lula, com o repasse de R$ 30 bilhões.

“Bolsonaro deu um calote nos governadores, tomou o ICMS sobre combustíveis com a promessa de pagar”, disse Haddad, classificando a medida como uma “barbeiragem” usada para “baixar artificialmente o preço da gasolina no ano eleitoral”.

Na época da desoneração, diante da pressão inflacionária, o governo Bolsonaro tomou a decisão de reduzir tributos federais e patrocinar uma queda no ICMS (tributo estadual) sobre os combustíveis, em articulação com o Congresso. A estratégia evitou medidas heterodoxas, como congelamento de preços, que historicamente geraram distorções.

Os valores de compensação aos estados pela perda de arrecadação com o ICMS foram parcialmente previstos na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2023. Essa previsão ocorreu no contexto da PEC da Transição (Emenda Constitucional 126/2022), aprovada em dezembro de 2022, ainda sob o governo Bolsonaro, mas com participação ativa da equipe de transição do presidente eleito Lula.

O acordo formal com os estados, que definiu os montantes e o cronograma de pagamento, só foi firmado em 2023, já no governo Lula, após pressão dos governadores.

4. Precatórios: manobras aliviaram contas de Bolsonaro, mas também de Lula

Haddad também atacou o que chamou de “calote” dos precatórios promovido em 2021, quando o Congresso aprovou as Emendas Constitucionais 113 e 114, criando um teto anual de pagamento dessas dívidas até 2026. O mecanismo permitiu excluir grande parte dos precatórios do teto de gastos, aliviando artificialmente o resultado primário.

Apesar da crítica, o governo Lula vem utilizando estratégia semelhante. Em 2024, por exemplo, foram pagos R$ 73 bilhões em precatórios via créditos extraordinários, mas esses valores não entraram no cálculo do déficit, que oficialmente ficou em R$ 11 bilhões. Na prática, o rombo real seria de R$ 84 bilhões, mais do que o triplo da meta de R$ 27,7 bilhões.

Em 2023, o STF validou essa prática ao julgar a ADI 7064, permitindo que os pagamentos até 2026 fiquem fora das regras fiscais — inclusive o novo arcabouço. O prazo, no entanto, expira em 2027, o que pode pressionar ainda mais as contas públicas caso não haja mudança legal ou nova decisão judicial.

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5. Taxa de juros e a “culpa” de Campos Neto, segundo Haddad

Além das questões relativas ao superávit primário, outro argumento que Haddad tem repetido para reafirmar a “herança maldita” de Bolsonaro diz respeito à taxa básica de juros, que chegou a 15% ao ano na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom).

Haddad demonstra preocupação com o patamar atual da Selic, mas isenta de responsabilidade o presidente atual do Banco Central, Gabriel Galípolo, em contraste com a postura crítica que o governo e o PT mantinham em relação so seu antecessor, Roberto Campos Neto.

Em entrevista à TV Record News na noite desta terça-feira (24), Haddad apontou a gestão anterior do BC como responsável pela manutenção da taxa em nível tão elevado.

“Estou preocupado, evidentemente. É uma taxa de juros muito restritiva, muito acima da inflação projetada”, afirmou. Ele alegou que a alta já estava “contratada” desde a última reunião sob Campos Neto, em dezembro de 2024. “Essa alta, sendo muito honesto, quem é do ramo sabe, foi contratada na última reunião da qual participou o Roberto Campos em dezembro. É como se tivesse estabelecido uma contratação futura da taxa”, reclamou.

O argumento não se sustenta. Ao falar em aumento “contratado” da Selic, o ministro fez referência aos aumentos de 1 ponto porcentual realizados nas duas primeiras reuniões do Copom em 2025. Tais reajustes foram sinalizados pelo comitê em dezembro de 2024, na última reunião sob o comando de Campos Neto.

Porém, após essas duas altas, o Copom promoveu outros dois aumentos na Selic, que somaram 0,75 ponto. E, de qualquer forma, todas as quatro reuniões de 2025 foram comandadas por Galípolo, e em todas a decisão sobre os juros foi unânime. Dos nove integrantes da atual formação do Copom, sete foram indicados por Lula.

Mesmo com os critérios de Haddad, governo atual segue deficitário

O economista Fernando Ulrich, da Liberta Investimentos, refez os cálculos fiscais a partir de dados públicos da Secretaria do Tesouro Nacional com base nos critérios utilizados por Haddad — ou seja, excluindo receitas de privatizações, dividendos de estatais e o não pagamento de precatórios — e concluiu que o resultado do governo Lula ainda é pior.  

Segundo Ulrich, se os R$ 55 bilhões de superávit de 2022 forem ajustados por essas variáveis, o saldo se transforma em um déficit de R$ 50 bilhões. Para 2023, o déficit corrigido sobe para R$ 171 bilhões, e em 2024, deve ficar em torno de R$ 64 bilhões. O cálculo também inclui ajustes na arrecadação de ICMS, como a reoneração da gasolina.

“Mesmo considerando a ótica e os critérios de Haddad, o governo atual ainda estaria no vermelho”, afirmou o economista em comentário no YouTube. “O que está sendo feito no Ministério da Fazenda com as contas públicas é destruição completa, é um buraco fiscal por decisão por falta de compromisso no controle das contas públicas, porque esta é a natureza deste governo”.

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